Há algum tempo atrás- parece ter decorrido uma eternidade, mas passaram apenas umas semanas- quando a minha filha trocou o Instituto Português de Oncologia pelo Hospital de Nª Srª do Rosário no Barreiro, trouxe-me um papel escrito que tinha retirado de uma caixinha, onde se podia ler "Pode levar". Estava na Unidade de Quimioterapia. Entregou-me esse papel, dizendo-me apenas: "Acho que vais gostar de ler".
Desde logo, pensei transcrever as palavras que ele continha, mas o tempo (Ah! esse maldito tempo que não se agarra, não retrocede e não pára) não permitiu fazê-lo antes.
Tudo tem um propósito. Hoje, ao transcrevê-las e, ao relê-las antes de o fazer, verifico como tudo o que dizem é a cópia fiel da degradação física dos últimos tempos da minha filha. A única diferença é a longevidade daquele que as escreveu, contrastando com a sua "meninice." A grandeza do seu autor, só é possível comparar à suprema grandiosidade da minha filha.
"Quando parece que nada mais resta
Admira-me ver tantas pessoas espantadas com a calma e que dou provas, neste estado miserável a que me reduziu a doença.
Perdi o uso das pernas, dos braços, das mãos e estou quase cego e mudo. Não poderei mais andar nem apertar a mão de um amigo, nem tão pouco posso escrever o meu nome. Não posso ler e quase não consigo conversar e ditar...
Mas é preciso ter em conta o que me resta.
É bem certo que as coisas e as pessoas me aparecem como formas vagas e imprecisas, mas eu posso gozar ainda a felicidade que me traz a luz do sol. (*)
Eu posso ainda adivinhar, quando as aproximo muito perto do meu olho direito(**), as manchas de cor das flores ou os traços de um rosto...
E tudo isso não é nada em comparação com os dons divinos que Deus permitiu que eu gozasse.
Através das lutas de todos os dias eu pude salvarguardar em mim a fé, a inteligência, a memória, a imaginação, a paixão da meditação e do raciocínio, e esta luz interior que se chama intuição ou inspiração...
A juventude reconhece-se em três sinais essenciais: o desejo de amar, a curiosidade intelectual e o espírito de luta. Apesar da minha idade e dos meus sofrimentos, sinto em mim uma necessidade irreprimível de amar e ser amado, experimento um desejo insaciável de novidades em todos os domínios do saber e da arte, e não fujo à polémica e ao ataque, quando se trata da defesa de valores supremos.
Tenho a ousadia de afirmar que, mesmo hoje, sinto-me conduzido, neste mar imenso da vida, pela grande maré da juventude..."
Giovani Papini
Capelania do HNSR, SA
(*) A única luz do sol que ela sentia era a filtrada pelos vidros, no piso 0, no pequeno corredor para a ala da radioterapia. E que felicidade quando lá passava na sua cama de rodinhas!! Eram cerca de 4 metros saboreados com um deleite que comovia...Nunca mais sentiu o vento, nem os raios de sol...
(**) O dela, o único com alguma visão era precisamente o direito
Quanta coincidência, filha...