existe sempre alguém ...passo e fico como o universo...
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Dez 07
publicado por alemvirtual, às 06:14link do post | comentar | ver comentários (8)

Há uns anos atrás, não muitos, escrevia discursos. Sim, a propósito desta ou daquela cerimónia ou de outra qualquer situação que requeresse as "tradicionais palavrinhas". Escrevia cartas formais e ofícios com o mesmo entuiasmo com que escreveria um belo romance. As funções eram outras e eu era a Paula "das flores" - como dizia o meu grupo de trabalho. Queria isso dizer que fugia da frieza e objectividade das comunicações oficiais com que quase sempre se reveste a linguagem formal (oral e escrita).

A minha filha era a minha crítica. Sempre que podia, perguntava-lhe a opinião. Lia-lhe. Ela escutava, criticava e analisava. Eram pequenos pormenores de uma grande cumplicidade que existia entre nós.

 

Comecei a correr há pouco mais de um ano. Passei a tentar relatar essas experiências.

A sua situação de saúde agravou-se e com ela o terreno das "flores" foi-se tornando estéril. Já não floresciam as urzes audazes dos montes, nem os malmequeres simples nas encostas, nem as papoilas escarlates nas veredas. Ainda assim, ela deliciava-se com as narrativas das minhas corridas.

A mãe, à qual associava em outros tempos os saltos finos e altos, era agora vista com uns ténis e uma cor avermelhada nas faces, esbaforida por ter ido correr. Criei uma imagem diferente. Mas ela, adorava igualmente essa mãe e a mãe adorava cada vez mais essa filha. Dia-a-dia a sua coragem de viver, de lutar contra a doença sem um queixume, pensando sempre nos outros, construíndo sonhos para o seu futuro mais próximo e mais longínquo tornou-se quase insustentável para nós que com ela convivíamos e a amávamos, por não nos sentirmos à altura deste ser verdadeiramente excepcional.

Por isso, todos os gestos simples que possamos fazer, os fazemos em sua memória. Por mais complicada ou desgastante que possa ser a situação, o esforço será sempre um grão de areia perante a grandiosidade do que foi a sua vida e daquilo que merecia. Ainda que lhe pudesse oferecer o Céu e a Terra seriam presentes pobres.

 

Ontem, ofereci-lhe a corrida em que participei. Hesitei em ir por várias razões. Duvidei de mim e dos motivos que me levaram a correr. Era por ela, mas tive medo que fosse também por mim. Deveria ser apenas por ela. Eu deveria ser as suas pernas, novamente funcionais e os seus olhos novamente a verem.

Antes do tiro de partida, beijei a sua estrelinha azul (que trago sempre ao peito) e segredei-lhe:"Filhota, corre comigo".

Quase a podia ver a correr ao meu lado, outras vezes adiantando-se rodopiava brincando à minha frente...Saltitava como uma menina (que é), deslizava como um anjo que fosse, desvanecia-se a meus olhos como o nevoeiro difuso sobre o último braço de rio, para deixar ver, de novo, os seus contornos, por entre a proa dos navios atracados. Ela correu nas asas de uma gaivota, nos raios de sol que brilhavam e nas folhas amareladas que caíam...

Ela correu comigo e eu corri por ela. Restituí-lhe os movimentos e descortinei por ela, a beleza desta velha cidade com cheiro a sal e a mar.

 

Há ajudas preciosas e eu tive a sorte de ter uma amiga ao lado. Quem nos visse, de camisolas iguais, pensaria sermos irmãs. O meu mundo interior era um turbilhão, mas apenas deixava escapar gracejos e risos. Estas máscaras são conhecidas, não é? E eu começo a ser mestre na sua arte.

 

Foi uma prova linda, bem organizada que eu gostaria de descrever ao pormenor, fazendo jus a tudo quanto de positivo aonteceu (e deve ter sido tudo). Não o faço. Outro, alguém de entre aquela imensa massa humana, registará fielmente a XXII Maratona de Portugal.

Para mim foi a I Meia Maratona e corri os 21Km e 95m em memória da minha filha Margaret.

É a ela que vou entregar a minha medalha.


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