Não sabe porque chamava "Tia" à irmã. Ela não sabe porque lhe chamava "Xolho". O que é certo é que ela foi "Tia" até que, um dia no colégio, quando a mais nova usava o Castelo Amarelo e a mais velha o Castelo Branco (respectivamente, 1º ano do Ciclo Preparatório e 1º ano do Liceu) esse epíteto lhe valeu uma reprimenda tal que, nunca mais, o Xolho se atreveu a chamar Tia à mana!
Algumas memórias ficam, como se de registos fotográficos, ou filmes antigos se tratassem. Não filmes mudos, a preto e branco, nem fotografias como aquela sentada, sem legenda, mas que recordo ser na Costa de Caparica, tirada por um dos fotógrafos que percorriam o areal carregados com máquina altas e estranhas. Essa mostra uma menina a franzir o sobrolho, lábios grossos e cabelo curto "à rapaz"; fato de banho de duas peças, estampado com motivos minúsculos, em cima de um cavalo de madeira e pés assentes na areia ondulante da praia. Tudo em tons de cinzento e preto. Recordo-me, porém, que o fato de banho era azul e amarelo, o cavalo era castanho e a areia dourada.
Da casa onde nasci, recordo algumas imagens. Pequenos excertos de quase três anos lá passados. Diz-se que é dificil recordar os primeiros anos de vida. Eu recordo alguns episódios. (agrada-me a palavra "recordo"; é reconfortanto; recordar é reviver a vida, na primeira pessoa)
Esta não era a casa nº3. Era uma casa assombrada, dizia a minha mãe. Ficava num dos "socalcos" onde se erguia o casario da vila. Por isso, casas e quintais surgiam em patamares.
Era uma casa com um corredor enorme, da qual nada mais recordo, além de que, ao fundo, havia a cozinha. Daí, acedia-se a um grande terraço com chão de cimento. Abaixo dele, o quintal do "A" (vou omitir o nome, se bem que me lembre dele), um homem com ar de velho que padecia de uma doença mental e a quem todos chamavam "O Tonto". Tinha pavor até de ouvir o seu nome, quanto mais pensar na possibilidade de me aventurar no terraço e ouvi-lo falar sozinho! Muito menos ultrapassar aquela barreira enorme de uns três ou quatro degraus que separavam o terraço, fronteira do meu mundo conhecido, do quintal inexplorado. Do quintal, apenas o fascínio pelas laranjeiras em flor falava mais alto que o receio do desconhecido. O medo era vencido pela atracção do cheiro. E esse aroma intenso, floral, exótico havia de permanecer em todas as casas do Ribatejo. Impregnou a minha infância e embebeu-a de sons de asas de abelhas.
A "Tia" era uma menina linda. Diziam que era uma boneca. Chamavam-lhe "Menino Jesus". Pele muito branca, olhos verdes e cabelos claros, quase dourados, enracolando levemente nas pontas...
O "Xolho" morena, cabelo curto, olhos escuros e reduzida estatura, observava o mundo olhando-o de cima das escadas...
Eu recordo-me dela, choramingona, mimada, frágil demais e birrenta, engolindo em troca de um brinquedo ou qualquer outro capricho, duas colheres de canja.
Ela recorda-me como uma menina feia, magricela, com um apetite voraz e uma pele muito escura.
Ela manteve-se linda, frágil, mimada. Eu continuo magra e com um apetide devorador.
Eu sou a sua protegida. Ela a minha protectora. São os contrastes entre a Tia de porcelana clara e o Xolho de barro escuro.
Mas o que eu queria era contar aquela vez em que a Tia pôs o Xolho debaixo da torneira do quintal... Devia ter uns três anos...ela menos de seis. Recordo-me da aflição debaixo da água. Ela recorda-se que eu era pequena e cabia lá, perfeitamente...
Outra noite, contarei, aquela vez, em que ela me ensinou a acender o candeeiro e eu dizia: "´ai tá...´ai tá": tradução - Já está! Já está! Ou quando eu me escondi num armário (ou foi ela que me pôs lá?):-)) e toda a família chorava, quando alguém levantou a hipótese de eu ter caído para o quintal do "Tonto"...
A foto é minha e é o Tejo em Constancia, Abril de 2007