O "romance" na chegada a Sintra...pontes entre lados...ou passagens aéreas entre sonhos
Os cerca de 1500 participantes (no total de inscrirtos) à partida
O Daniel, o António, eu e a Ana (da esquerda para a direita ainda em Sintra
(foto de WWW.AMMAMAGAZINE.COM) (quase à chegada à meta)
No regresso...o oceano...refulgente
E pronto. Já está. Não se “acabou a luz” e eu “acabei a empresa”.
A despeito da má (péssima) preparação física (na realidade mais a falta dela), da negativa condição emocional e psicológica, malgrado o tabaco e as poucas horas de sono (induzido), consegui. “Venci” a serra, que é como quem diz, “conclui os 17 Km (quase) do Grande Prémio “Fim da Europa”. E, ontem à noite, imaginava já estas palavras. Poderiam ser escritas?
Não sei se foi, simplesmente, o fim de uma corrida ou o fim das corridas. Hesitei até antes do início. Valeria a pena? Indecisa um dia antes, ora decidindo não ir, ora querendo muito ir. Continuo a não saber se quero, mas gosto e, sobretudo, ela gostava…
E quem me viu ali, correndo, gracejando e sorrindo, imaginou, por breve instante, o tormento interior? E os dilemas? Bem, mas isso é outra conversa, faz parte de outra reflexão… Cada um, correu com o seu mundo “às costas” e eu corri com o meu. Vamos à prova.
Subidas íngremes e descidas abruptas. É assim esta prova. Uma prova que é um hino ao esforço e à resistência...à capacidade de recuperar para voltar a subir...Um assalto ao oceano verde...
O património construído é soberbo, mas o paisagístico é indescritível…Quem conhece Sintra, a serra e a magia que encerra as encostas escarpadas, mergulhando em direcção ao azul do mar, sabe do que falo. E quem não conhece, sonhe e, quando percorrer aquelas paragens, verá a realidade suplantar o próprio sonho. Paisagem bucólica, perdida no tempo, que desejo eterna como um tesouro, impossível de ser corroído.
A Fonte Mourisca de onde partimos era já prenúncio de um percurso destinado a ficar gravado na memória, como as histórias das “Mil e uma noites” se gravaram na infância e me fizeram sonhar, ao longo dos anos. Ainda, hoje, simbolizam o universo mágico e fantástico das histórias contadas ao serão, ou lidas no aconchego da cama quentinha, nas manhãs de Inverno. A minha mãe era uma excelente contadora de histórias. Sobretudo das que nasciam, assim de repente, da imaginação, mas também das dos livros e dos artigos de jornal. Histórias mirabolantes, esotéricas, fantasiosas…de fadas e duendes…de “almas penadas” e de príncipes encantados…de fábulas, de…tantas, tantas…todas, ou quase com uma moralidade facilmente entendível.
O Oriente fascina-me. Mas também o Ocidente e esta ponta mais ocidental onde corri. Recortes extremos do meu país, tão extremos que sentimos delinear-lhe a silhueta como mãos apaixonadas percorrendo o corpo amado.
As altas chaminés do Palácio ficaram para trás. Rapidamente avançámos para a serra. E mergulhámos num mundo verde. Era como se a Mãe Terra chamasse por mim. Respondi, intimamente ao seu apelo e misturei-me com a macieza da terra castanha e elevei-me até à copa das árvores. Percorri com a seiva os troncos altaneiros e desci com heras enlaçadas.
Chamavam-me a atenção para a estrada que serpenteava e regressei à corrida. Ladeada pela Ana e o António subia cada vez mais alto. À frente, nas curvas caprichosas da encosta surgiam manchas coloridas como pinceladas num fundo verde. Eram os que nos precediam.
Parecia que o sol se tinha eclipsado. A sua luz filtrada pelo arvoredo quase não chegava a ser suficiente para fazer do dia, dia. Era lindo…Aqui uma frescura feita quase obscuridade, ali uma clareira de um brilho ofuscante…
Lembrei-me de que, algures naquela serra, há muito se confundiu com a própria natureza, as cinzas, lançadas ao vento, da mãe de um amigo. Intimamente, rezei uma Ave-Maria, por ela e pela minha estrelinha que deve brilhar acima das copas frondosas, no firmamento nocturno.
Passaram 8 Km. Uma subida surgiu. Seria a última.
- “Depois a descer”… O António ia antecipando os acidentes do relevo…preparando-me. A Ana começou a ficar para trás. Perdi-a de vista, o ziguezague ocultava-a. Avançámos com passo lento.
- Ela apanha-nos na descida. – dizia o António.
Assim foi.
O oceano surgiu repentinamente, lá ao fundo. Via a brancura da espuma e o azul metalizado da água.
E começámos a descer. Sem a resistência das subidas, podíamos agora abrandar o esforço e “deixarmo-nos ir” – como dizia o meu parceiro desta luta.
A descida pareceu-me quase gigantesca. Custa-me descer. Mais difícil que subir. Não sinto o esforço da subida, nem a acidez nos músculos retesados, nem a pressão de uma respiração pesada, mas não gosto de descer.
Chega a Ana. Voltamos a estar os três, como em quase todo o percurso. Ela gosta das descidas. Distanciou-se uns metros que eu já não consegui anular.
Ainda tive fôlego para agradecer as palmas e incentivos que ouvia.
-Força, menina! E eu sorria...
Eis o Luís, de máquina em punho, captando o sorriso à chegada. Um aceno…
A Meta e um piiiiiiiiiiiiii ao pisar o tapete. 1 h 38m e 28 s. Desliguei o cronómetro.
Uma tenda e as mesas onde deveria ter sido servido quase um banquete. Apenas queria água e saí com dois bolinhos no guardanapo. Iria oferecê-los ao Luís. Mas não consegui dar-lhe esse “miminho”. Comecei a caminhar em sentido inverso. Perdi-o de vista e perdi o grupo. Eles, inteligentemente, esperaram perto da tenda. Andei quase 2 Km. Quando me convenci de que não deveriam estar tão longe, voltei para trás. De novo até à Meta… Encontros e desencontros…da vida e da corrida…
Rostos que começam a ficar amigos…
Prova que faz jus ao fantasma da dureza…mas que vale cada instante de esforço…
Se houver outras, talvez um espírito diferente…o espírito de quem resiste…a coragem de ser diferente…e o sonho da liberdade…reviver Zeca Afonso…em Grândola.