Permanece o tempo escuro e húmido. Amanhece, insistindo no tom pardacento de Inverno.
Na véspera tinha decidido que iria correr. Obriguei-me a um diálogo aceso entre a vontade de ir e o comodismo de ficar. A cama quente convida a uma manhã de preguiça, ou talvez de desistência. Com relutância afasto a roupa e levanto-me. Quem disse que as lutas interiores são fáceis? Quantas vezes se perdem os combates mudos travados no nosso íntimo! E quantas vezes se ganham estas batalhas! Então, sorrisos iluminam o rosto, o olhar, ainda triste pode desmentira vitória, mas calaram-se os gritos silenciosos da alma. Saboreia-se em notas adocicadas a amargura vencida.
Toda a noite tinha sonhado. Sonhos estranhos quase pesadelos. Barcos em águas revoltas; fugas de não sei quem; becos sem saída onde ficava presa; vozes magníficas entoando o "Canto dos Escravos Hebreus". E o meu desejo expresso: quando morrer quero que este cântico ecoe vivo e forte; Para que se grite que, se fui escrava, foi apenas da liberdade dos sonhos e da força de vencer.
Um arrepio de frio estremece-me o corpo. Quase me faz desistir. Quase...hoje, não dou oportunidade ao desânimo. Hoje, sou vencedora.
Gosto de correr à chuva. Gosto de sentir a carícia das gotas. Do misto de quente e frio.
Começo com um ritmo lento, hesitante. A respiração forçada, difícil.
Agora luto contra o corpo. Não apenas contra a vontade. Não desisto.
O céu insiste na cor escura.
Quando chove o aroma do campo intensifica-se. Cheira a terra e a verde; a pinheiro e eucalipto. Despontam malmequeres brancos por entre tufos de verde.
Os pés enterram-se na lama macia; chapinham em poças de água.
Estou molhada e cansada, mas não vencida. Essa é a força que me move a avançar. Encho o peito de ar e sopro o tecto escuro das nuvens. O céu desnuda-se num azul transparente.
O dia pode continuar chuvoso, não importa. No meu dia fez-se sol. Basta querer. Eu corri. A grandeza das vitórias pode ser a humildade de pequenos gestos.
link para ouvir http://www.youtube.com/watch?v=rmgQTBQ3Mfc